quarta-feira, fevereiro 08, 2006

O Bombeiro Pirómano

O Ocidente é pirómano: desde o Renascimento europeu deitou fogo aos seus próprios terreiros, às instituições da sua ordem antiga, pré-revolucionária, e levou-o até aos quatro cantos do mundo. As suas armas foram os progressos técnicos, o fervilhar incessante de ideias, a violência militar. Também é bombeiro, pois só ele possui os meios para apagar os fogos que ateia. O drama é que quando os apaga, muitas vezes é tão violento como quando os ateia. Foi assim, por exº, que fez jorrar a chama do comunismo, apagando-a depois num apocalipse de violência que se desenrolou fora das paredes da sua casa. Ao proceder deste modo, ateou os incêndios identitários que assolaram o planeta; depois do 11 de Setembro, procura apagá-los, não sem novas violências.

Perante um quadro destes, o discurso narcísico do Ocidente recusa reconhecer a sua omnipotência e responsabilidade. As convulsões e as violências não seriam o resultado da ocidentalização do mundo, mas o da incapacidade dos povos não ocidentais de assumirem a modernidade, de serem pacificamente democráticos, como são as grandes democracias ocidentais que enterraram definitivamente entre elas o machado da guerra e da violência. Franceses, ingleses, alemães, que combateram entre eles durante séculos pelo domínio da Europa e do mundo, estão hoje em paz e realizam pacificamente a união progressiva da Europa. Não seria, portanto, a ocidentalização do mundo que provocaria os conflitos, mas, pelo contrário, os fanatismos religiosos ou étnicos, a incapacidade de edificar o Estado moderno, que ainda persistem fora do Ocidente e que estão na origem de conflitos onde é solicitada a sua intervenção para restaurar a paz.

De qualquer modo, os EUA seriam polícias involuntários chamados em socorro, um império contra a sua vontade, pois poderiam perfeitamente viver no isolacionismo, fecharem-se no seu continente que contém tantas riquezas, que não precisaria desse imperialismo para prosperar. Os bem-pensantes desta nova ordem internacional justificam o caos das situações de crise unicamente pela loucura de Sadam no Iraque, Milosevic na Sérvia ou os talibãs no Afeganistão, sem os quais não teria havido crise e, portanto, intervenção ocidental - em suma, pela existência de um “eixo do mal” que teria sucedido ao “império do mal”.

Podemos ir mais longe nesta lógica: Sem o pendor “inato” do Islão pela guerra santa e a sua suposta recusa das outras religiões, não teria havido Osama Bin Laden nem guerra no Afeganistão, Israel viveria em paz e não teria de se defender constantemente contra os palestinianos ou os libaneses que lhe são hostis por definição. Devido à sua constituição genética cultural, o Ocidente é racional, democrata, pacifista, só combatendo quando é forçado a fazê-lo, ou porque é solicitado pelas vítimas, ou porque é injustamente agredido. O Oriente não consegue curar-se dos seus fantasmas religiosos ou tribais, plantados nos seus genes, e o Ocidente não pode tolerar desordens que se arriscam a ameaçar a ordem do mundo, decerto imperfeita, mas que precisa de um polícia para a manter. O Ocidente é apenas um bom bombeiro voluntário e acusá-lo de pirómano seria dar provas de uma paranóia grave que é preciso calar.


O medo da mudança

Assim se pôs no índex o discurso crítico, selvaticamente combatido por um forte terrorismo intelectual que perguntará nesciamente ao interlocutor que põe em causa o discurso narcísico e essencialista: “Mas, por muito imperfeita que seja a ordem ocidental, quer substituí-la pelo quê?”.

Diálogo de surdos entre dois discursos que se recusam ouvir-se ou que, pelo menos, não podem entender-se. Num caso, o do essencialismo e do narcisismo para o qual a natureza humana está fixada em grandes categorias antropológicas caracterizadas por invariantes que classificámos de “imaginárias”, construções intelectuais artificiais que lançam um véu sobre fenómenos do poder, o do ocidente, e da queda, o do oriente. No outro, o do espírito crítico e corrosivo, domina a crença na possibilidade permanente de mudança, de progresso nas instituições humanas e na moral universal. Mas este espírito corrosivo assusta, tanto no Ocidente como no Oriente.


Nota:
Do livro de Georges Corm "Ocidente/Oriente - a fractura imaginária"
Edição Teorema 2004

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