quarta-feira, novembro 30, 2005
Sociedade Recreativa Miranços e Bitaites
Cuspir e escarrar, deitar o lixo para o chão, coçar os tomates, tirar macacos do nariz, deixar crescer a unhaca do dedo mindinho para extrair a cera dos ouvidos, e que também serve para palitar os dentes a seguir às refeições, falar mal dos outros por inveja, não limpar a sanita depois do serviço, etc, etc…é todo um rol de hábitos bem portugueses e que também nos definem como povo culturalmente evoluído que fomos, somos e seremos.
Mas aquela actividade que cativa mais portugueses, a que exige mais poder de observação e de tempo e é praticada principalmente por desocupados e/ou reformados é o “Miranço”.
O “Miranço” consiste em ficar parado a contemplar e a apreciar algo que os outros, os ocupados, estão a fazer. Qualquer coisa serve para o mirone se distrair; como estar a chegar a casa com compras, estacionar o carro, uma mulher que passa, uma montra, um autocarro, um comboio, e por aí fora…
No entanto, para além de todas estas, aquilo que mais atrai mirones, o mais interessante, o expoente, o supra-sumo, o seu grande orgasmo mental são as obras de construção civil. É vê-los agrupados de mãos nos bolsos a analisar o desenvolvimento dos trabalhos em curso, as valas de esgoto abertas, uma máquina a retirar entulho e a carregá-lo num camião, betoneiras, martelos pneumáticos, vigas, tijolos, pilares, toda esta parafernália tem inúmeros entusiastas a lançarem os seus bitaites que até parecem engenheiros especializados e com larga experiência acumulada no ramo.
O sr. Marques, beirão estabelecido no Barreiro vai para uns trinta anos, é mestre e senhor nesta actividade. Não falha uma obra de grande envergadura, um esgoto, uma conduta que rebentou, melhoramento e tratamento de jardins municipais ou limpeza de ruas. Ele tem sempre uma valiosa e útil opinião sobre o assunto.
Como está reformado da Marinha, logo após o pequeno almoço passa pelo quiosque para comprar o jornal cultural “A Bola”, dá uma mirada nos títulos e solta logo duas ou três postas a dizer mal do Pinto da Costa, dos árbitros que roubam o Benfica e dos ranhosos do Sporting. Como conceituado treinador de sofá - já que deixou de ir aos jogos porque diz que há uns anos houve uma confusão e levou com um chapéu de chuva na cabeça e jurou que nunca mais dava dinheiro a chulos do futebol - o sr.Marques julga-se o melhor analista das redondezas no que respeita ao chuto na bola, sendo que não perde um jogo desde que tem a SporTv , seja ele um jogo grande ou um Estrela da Amadora-Paços de Ferreira, tudo tem interesse. Depois, diz até amanhã e arranca para a sua ronda pelas obras em curso.
Acompanhou do princípio ao fim as obras da ponte da Recosta e, ultimamente, tem-se dedicado às do Polis e às da Av.Alfredo da Silva. Para ele as coisas estão sempre mal feitas, os gajos não percebem nada do assunto, são uma cambada de maçaricos e andam a gastar mal o dinheiro. Quando era da Marinha correu meio mundo embarcado, desde o Brasil, Timor, Angola, Cabo Verde, S.Tomé, Moçambique, Macau, Goa, Austrália, Marrocos, já viu de tudo, conhece muita coisa e, portanto, não há nada que ele não saiba. É capaz de estar a falar trinta minutos de seguida em monólogo e não ligar minimamente ao que os outros têm para dizer, uma vez que só se ouve a ele próprio.
O sr. Marques também se especializou no miranço de jardins. Aproxima-se dos jardineiros da câmara, dá os bons dias, pergunta o que estão fazer ao jardim, e começa logo a lançar os seus sábios bitaites, desenterra uma histórias da sua juventude recheada de feitos heróicos e inalcansáveis para a novas gerações que são todos uns maricas de merda. Herbicidas, pesticidas, adubos e por aí fora ele está por dentro de tudo isso.
De vez em quando apanha alguém que não gosta destas intromissões e há discussão da grossa, com insultos e ameaças tipo “agarro-te aí pelo pescoço que tu vais ver o que é bom, ó meu grande cabrão!” ou “incompetente de merda!”.
Para ele, um Salazar é que tinha remédio para esta porcaria toda que anda por aí. Punha tudo a funcionar como deve ser e não havia mama para ninguém, como no seu tempo. Era preguiçosos para a estiva, ladrões a limpar matas e a arranjar estradas, croatas, ucranianos, pretos e brasileiros para a terra deles e acabava-se a rebaldaria.
É assim o sr.Marques – o mestre do miranço e do bitaite.
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