quarta-feira, julho 19, 2006

O Crava



...esse espécimen da fauna urbana nacional que é o crava.

O crava é um tipo simpático. Gosta de conviver e de fazer amizades. Ajuda velhinhas a carregar sacos de compras, bilhas de gás, a atravessar passadeiras- que como sabemos são muito perigosas, presta-se a chamar um táxi, a orientar uma manobra de estacionamento, e por aí fora. Adora fazer favores e espera ser recompensado. Pode ser uma moedita, um cigarrito, uma bica, ou qualquer coisa para trincar (os bolos estão no top das preferências).

O tipo chega de mansinho e mete conversa de circunstância. O futebol resulta sempre. Concorda sempre com o seu interlocutor, ganhando assim a sua simpatia. E, no momento certo, logo crava um cigarrito. A primeira vez é a que custa mais. A partir daqui, com a situação desbloqueada, é sempre a cravar. Sempre que aparece crava. Lá faz o seu favor da ordem, mas sempre com o pensamento na recompensa. Torna-se imprescindível e o cravado arrota. É uma troca. Ele oferece os seus serviços e os outros pagam. Só que, passados uns dias aquilo começa a parecer obrigação e o cravado, já farto, quer ver-se livre do tipo. Só que não é fácil. Nem pode ser de uma forma abrupta. Há que ir preparando o crava para o fim do cravanço, não vá o gajo passar-se e sabe-se lá do que um maluco é capaz quando se passa dos cornos. Um gajo começa por dizer que “isto ´tá mal”, “estou a deixar de fumar”, “ando mal disposto com os cafés”, e por aí fora. Assim o crava vai concordando, começa a magicar maneiras de arranjar outro tipo para cravar, já só aparece esporadicamente, até que consegue outro que lhe sustente o cigarro, a moeda e a bica.

No que se refere à moedita, há quem consiga convencer incautos com os mais variados argumentos:
- A mãe gravemente doente a precisar de medicamentos;
- O leite para a criancinha que hoje ainda não comeu (há dois anos que espero pelos 10 euros que emprestei a um gajo conhecido de infância e que ficou de pagar no dia, jurava ele pela saúde da filha);
- Faltam 50 cêntimos para o bilhete;

Agora há coisa de dias, apareceu-me um tipo que eu nunca tinha visto. Estendeu a mão para me cumprimentar, deu os bons dias e então tudo bem? naquela de meter logo conversa e ganhar a confiança. A seguir saiu-se com esta:
- Eh pá, desculpe lá, mas você na sexta-feira enganou-se aí no troco que me deu.
Como assim? Perguntei-lhe eu para que se explicara e para me dar tempo de perceber melhor se ele me queria enganar. A seguir o tipo diz que tinha pago 2 maços de português com 20 euros e que eu lhe tinha devolvido só 4.50 euros de troco, faltavam 10 euros. Então, eu digo-lhe:
- Olhe, se eu não me lembro de alguma vez o ter visto na minha vida, como é que lhe vendi 2 maços de tabaco?
- Não se lembra?, diz ele, estive aqui com a minha filha pequena e tudo…olhe que é verdade, você enganou-se, veja lá isso… Depois eu disse:
- Olhe o senhor devia ter verificado o troco na altura, agora não lhe posso fazer nada…se eu devolver dinheiro a cada um que me aparecer aqui a reclamar vou à falência rapidamente, não acha? A seguir o tipo foi-se embora, dizendo para eu ver melhor que depois passava por lá mais tarde.
Até hoej não o voltei a ver.


É certo que há vários géneros de crava, mas este último foi uma novidade para mim. Já me tinha aparecido com pinta de janado, vinha com uns phones nos ouvidos e que me perguntou por pilhas. Quando disse o preço, o tipo pediu para o deixar levar logo as pilhas, que ia a casa buscar o dinheiro. Eu disse-lhe, então vai primeiro a casa buscar o dinheiro que depois levas as pilhas. Era para ir já a curtir um granda som! Eu juro que venho cá pagar! Nada feito. Não cedi.


Cada crava desenvolve a sua especialização, formas de abordagem e locais de cravanço.
Veja-se os arrumadores de carros com os seus locais e horários previamente definidos, e ai de quem ousar tomar-lhes o lugar. Dá logo espiga. Isto é uma espécie de licença não escrita, que os habilita a explorarem determinado local, a determinadas horas, e mais ninguém está autorizado a fazê-lo. Cada um tem um espaço concessionado e mais nada. Devido ao desrespeito por esta norma já vi cenas de porrada da grossa, com naifas e pedras de calçada ao barulho.


Também há o crava itinerante. É aquele não tem poiso certo. Vai vagueando. Dá sempre a sensação que vai muito apressado e cheio de afazeres, mas é só encenação. Ao se cruzar com uma pessoa faz cara de enjoado e/ou adoentado e crava. Só custa o primeiro, porque a partir dali e quase sempre à mesma hora lá vem ele ao mesmo. Os tipos fixam os horários, as rotinas dos outros e o que mais for preciso só para lhes cravarem qualquer coisa.

Depois há o crava arrogante. Primeiro faz um voz meiguinha e pede a moeda. Se não derem, volta as costas e vai-se embora a rogar pragas e a chamar nome feios às pessoas. Desta forma vai perdendo clientela, mas é o seu mau feitio a funcionar e não há nada a fazer.

Há ainda o crava de ocasião. Não é propriamente um profissional, não é o seu modo de vida, por assim dizer, mas como não compra tabaco vai cravando aqui e ali. É bem capaz de estar ali uma meia-hora na palheta e, depois de apalpar os bolsos e nada encontrar, pede desculpa e “desenrasca-me lá aí um cigarrinho, s.f.f., que me esqueci dos meus!”.

Certa vez fui abordado por um individuo, a quem eu conheci-a só de vista, e que me pediu 5 euros emprestados para ir ao Intermarché, e que ficasse descansado que logo à tarde já tinha dinheiro e pagava-me. Recusei e, perante tanto insistência, aconselhei-o a fazer as compras à tarde, uma vez que já teria dinheiro nessa altura.

Agora conheci um tipo que se diz vindo da Bulgária e que costuma estar à porta do Minipreço da rua Bartolomeu Dias, mas que também faz a Igreja de Sta.Maria aos domingos. Queria que eu lhe carregasse o telemóvel, mas eu não tinha forma de o fazer e aconselhei-o a ir a um café. Respondeu que não lhe carregavam o aparelho se não consumisse e ele não tinha dinheiro…mas tinha telemóvel (!?).

Não me posso esquecer de mencionar aqui o Tonho Cigano, que bate metade da rua dr.Manuel Pacheco Nobre e controla a zona do talho do Lino. Várias vezes me desenrascou e várias vezes me cravou. O pior é quando bebe demais. Cada vez que isso acontece há merda. Anda à porrada por dá cá aquela palha, diz que vai ao Lavradio desenterrar uma pistola e mata alguém, insulta tudo e todos e às vezes vai acabar no hospital, de onde se pira assim que se pode ter em pé.
O arrumador do Intermarché, cuja estratégia passa por subir a perna da calça e exibir uma ferida nojenta que dá vómitos e pedir uma moeda para comprar medicamentos para curar aquilo. E o Tonho Maluco, sempre vestido com a farda azul da câmara, onde em tempos terá trabalhado. Este não me crava, mas às vezes pago-lhe um café. A sua vocação é a porta da Igreja de Sta.Maria e cemitérios em dias de mais movimento. Posso afiançar que o tipo tem manhãs de Domingo em que faz 25/30 euros sem se chatear. Depois, guarda uma parte e o restante vai gastá-lo com putas agarradinhas. E é tudo o que o Tonho precisa para viver. Paga 70 euros por mês para ir comer à Misericórdia e se não é feliz, parece.

É um modo de vida e, além do mais, cravar não é roubar.

Sem comentários: