Desta vez resolvi embarcar num regresso aos anos 80, musicalmente falando, mas não dos grupos e/ou artistas que ficaram para a história. Vou reviver aqui amostras de artistas e projectos que não chegaram a lado nenhum, que ficaram pelas memórias de garagens, sótãos empoeirados e claustrofóbicos, varandas que serviam de palcos improvisados e reuniões nocturnas em esquinas de ruas que moíam o juízo aos vizinhos.
Com epicentro na Vila Chã, a partir dos anos 83/84, começaram a aparecer bandas de música formadas pela malta e movimentos artísticos que se perderam no tempo. Sonhos de adolescência e juventude que não singraram, mas que fizeram todo o sentido na altura e que, apesar de uma terrível falta de meios e apoios, foram realizados para gozo e felicidade de todos nós.
A maioria de nós vivia a música de uma forma absolutamente imprescindível, era como comer e beber-não se podia passar sem ela de maneira nenhuma. Naquela fase dos 13/14 anos chegavam-nos novidades sonoras de alguns amigos mais velhos que mandavam vir discos de Inglaterra ou que gravavam de outro amigo. Um deles, vivia ao pé do Barreirense, tinha uma imensa colecção de cassetes e discos de tudo e mais alguma coisa, não se importando de gravar ou emprestar sempre que podia. Também havia o Mamute que morava lá rua e tinha uma boa discoteca, o Filipe e um tal de Zé, um gajo porreiro assim tipo gay mas cuja discografia tinha todas as novidades mais obscuras que podíamos imaginar. Tudo malta já na casa dos vinte anos. Estes eram os principais fornecedores de som do pessoal. Claro que também comprávamos, mas as mesadas não davam para muito. Era mais barato gravar cassetes ou emissões do programa “Som da Frente” do António Sérgio, que nesta altura dava à 4 da tarde, de segunda a sexta. Ainda me lembro da primeira vez que o ouvi e a primeira música que me ficou na cabeça foi o “Tell me when it´s over” dos Dream Syndicate.
(capa da única cassete que consegui encontrar nos arquivos)
No entanto, no que toca a projectos musicais, o primeiro de todos ainda não tinha nada a ver com esta onda. Tinha antes a ver com a onda do Breakdance, que apareceu quando se estreou no Cinema Condes um filme chamado “Beat Street”. Organizaram-se autênticas excursões de malta para o seu visionamento. Eu fui duas vezes a Lisboa. Uma com um grupo para aí de uns dez e outra vez só com o Jorge e o Kevin. Apreendíamos tudo o que era passos de dança, cambalhotas, fazer o robot, a corrente eléctrica, etc.. Naquela altura estava em construção a via rápida e à sombra da ponte era onde ensaiávamos e fazíamos combates de dança. A tudo isto não foi alheio o facto de muitos amigos serem de descendência africana e de sentirem imediata identificação com este movimento, bem como com o Reggae de Marley, Peter Tosh e Jimmy Cliff que se ouviam em gravadores enormes (os chamados tijolos) e até naqueles antigos gira-discos portáteis. Um tipo nascido em Moçambique e que era conhecido por F.M.(Fernando Maricas) tinha um destes e passava muita música da Jamaica.
Pois então, aqui vão alguns exemplos de um grupo de amigos que não sabendo sequer tocar uma única nota, não se inibiram de mesmo assim fazer música da melhor maneira que sabiam e podiam.
Vila Street Beat – Onda Breakdance. O primeiro grupo, formado por Master J e Doctor Jorge, ou seja, eu e o meu amigo Jorge. Não havia instrumentos, apenas colagens de sons roubados a outras músicas, principalmente inspirado em Grandmaster Flash, um dos pioneiros daquilo que hoje se chama hip hop. Só gravámos uma música e dançava-se ao seu som. O Jorge quando fez 18 anos passou-se devido a um amor não correspondido, ingressou na Academia Militar e hoje é Oficial do Exército. Raramente o vejo. Foi das pessoas mais inteligentes que conheci até hoje. Mas perdeu-se um talento para a arte.
The Voice – Já com influência dos sons britânicos, como Cure, Bauhaus, Joy Division, Echo & The Bunnymen, etc.. Era formado por mim, pelo Jorge, o Tó Grande e o Kevin. Demos dois concertos (se é que se poderá chamar assim): um na varanda do Fernando e outro na esquina do café S.Francisco. Em ambos fomos corridos pelos vizinhos. Os instrumentos consistiam em tábuas com fios de pesca presos com pregos, latas de tinta e pelo único instrumento a sério, um órgão. Este não era usado ao vivo porque não tínhamos como ligá-lo à corrente. O Kevin foi despedido durante as gravações da cassete, porque não conseguia atinar com o ritmo na tampa de um frasco de café Tofina. Entrou o Fernando-o Gordo-para as percussões.
Registos: Cassete Álbum “Broken Glasses”, hit single “Que fim triste/Há lodo no cais”, gravado no meu sótão.
Os Miseráveis – Já com guitarras de caixa a sério, mas ainda com latas e tachos. Quase a mesma formação, tendo saído o Tó, ficou o Gordo no baixo e o Kevin nos ritmos (andou a praticar e conseguiu desenrascar-se). Ocasionalmente participaram o Domingoni e o Marco Heavy.
Registos: Cassete Álbum “O Incrível Mundo d´Os Miseráveis”, cujo único exemplar terá desaparecido. Cassete “Live at sótão do Domingoni”, onde foi registada uma portentosa versão de “New dawn fades” dos Joy Division.
Os Miseráveis II – Só eu e o Gordo. Tocávamos tudo, gravávamos em camadas e tocávamos por cima. Inventámos uma língua que não significava nada ou invertíamos as palavras.
Registos: Cassete mini-album “A gurna Uaca”, gravado no meu sótão.
Com Fuzão – Banda do Lulu e do Rogério Metal. Definiam-se como afro-metal, ensaiavam e tocavam para a malta na garagem do Rogério aos sábados à tarde.
Registos: Não conhecidos. Nunca tocavam da mesma maneira, porque não se lembravam da anterior.
Projecto Shit – Grupo obscuro, cujos membros nunca foram divulgados. Não deram concertos. Gravaram um clássico.
Registos: “ Cassete álbum “A Lot Of Shit”.
Satélite 2000 – Não existem dados sobre estes.
Registo: Cassete com o tema “Zeca Diabo metes medo” (desaparecida)
Os Arrasadores – Grupo punk do Bostiá e do Nuno Arrasador. Som violento e anti-tudo. O Arrasador viria a tornar-se traficante de drogas duras e membro da Juve Leo. Acabou preso. Nunca mais soube dele.
Registo: Cassete com o tema”Eu ia cagar e estava lá uma mosca”.
Ordine Nera – Música industrial cruzada com canto alentejano. Inspirado em Test Department que tinham gravado com um coro de mineiros em greve contra a Margaret Tacher.
Registo: Cassete álbum “Canto”.
Litronic Bluff – Várias guitarras sobrepostas, cada qual tocando para seu lado. Formado por Cobra Moonstar e Magazé. Inspiração Sonic Youth.
Registo: Cassete álbum “Risque de Choque Eléctrique”.
Xapa de Zinco – O César da Quinta da Lomba criou este projecto. Gravou uma cassete com sons de chapas de zinco, berbequins, martelos, bidons e com a voz da sobrinha, a Inês. Era música industrial, que na altura estava em voga no Barreiro. Os mais conhecidos desta onda foram os Rócócó, que chegaram a sair no Blitz e foram tocar ao Rock Rendez-Vous. Também havia os Andrómeda Amorfa e os P.C.P.(Projecto Carnes Plásticas). O núcleo duro situava-se na Quinta da Lomba.
António Supositório – Grupo anárquico formado à pressa para concorrer a uma selecção de bandas para ir ao Avante, organizado pela Junta de Freguesia da Quinta da Lomba. Nunca ensaiámos e fomos tocar ao anfiteatro do Parque da Quinta da Lomba. À segunda música desligaram o som alegando que estávamos a danificar o material. Até o Gengivas (ivas, ivas rock ´n roll)* tocou bateria e a Inês, de apenas 4 anos, cantou o “Atirei o pau ao gato” acompanhada por uma muralha de distorção que a organização qualificou de insuportável. Claro que não fomos apurados, mas sim uns tipos que tocaram uma versão do “Knockin´on heaven´s door” a imitar os Guns ´n Roses.
Marcante foi também a edição do único número do fanzine “ O Cibernético”. Para além da música, abarcava poesia, cinema e outras formas de expressão artística. A partir de uma ideia e força de vontade do Domingoni, com fotocópias tiradas à sucapa nos empregos dos pais, lá conseguimos editá-lo e até vendê-lo na escola. Eu escrevi sobre o Syd Barrett, o Domingoni sobre uns concertos, o César fez uns poemas, o Gordo sobre os Einsturzende Neubauten, e por aí fora. Mas o artigo que viria a tornar-se um clássico absoluto nos anais do jornalismo local foi da autoria do Kevin. Era sobre o filme “As Asas do Desejo” do W.Wenders. Pois bem, conhecendo o Kevin como conhecíamos, qual não foi o nosso espanto quando nos deparámos com um artigo que utilizava a mais refinada e cuidada linguagem que jamais algum de nós utilizara ou sequer sonhara. Ninguém tinha bagagem para escrever aquilo! Para mais o Kevin!? Aquilo estava tão elaborado, com metáforas, termos obscuros, significados que ninguém percebia, palavras rebuscadas no dicionário, que puseram em causa a autoria do artigo. Ele jurava a pés juntos que não tinha copiado nada. Tinha tido um trabalho dos diabos, um assombro de inspiração que o tinha levado a realizar aquilo e agora era posto em causa injustamente. Ficou até zangado com o pessoal.
Passado uns tempos, o Kevin organizou uma festa em sua casa, uma vez que os pais tinham ido à terra. Enquanto escolhíamos discos e cassetes para ouvir, alguém encontrou no meio de um LP uma certa revista que se pôs a folhear. E, espanto dos espantos, a páginas tantas depara-se precisamente com o artigo original que o Kevin tinha colocado no dito fanzine, palavra por palavra. Ou seja, uma cópia, uma violação de direitos de autor e o desmascarar de uma mentira. Gozado até mais não, o Kevin até ameaçou a malta que acabava com a festa e punha todos na rua. Pediu que não se divulgasse nada, ficava só entre nós, afinal que mal tinha aquilo? Além do mais, gozava agora de boa reputação junto das garinas e se o embuste fosse conhecido lá se iam as conquistas por água abaixo na Escola Secundária dos Casquilhos.
Há mais um episódio caricato com revistas escondidas pelo Kevin no meio de LP´s.
O Lulu emprestou-lhe uma vez aquele disco duplo ao vivo dos Dire Straits, o “Alchemy”. E o Kevin escondeu lá no meio uma revista da “Gina”, porque ali era seguro que a mãe quando fizesse limpeza não iria mexer. Tudo muito bem. No entanto, a dada altura o Lulu pediu o disco de volta e não reparou na revista que tinha dentro. Depois alguém lhe pediu emprestado o disco. Entretanto, o Kevin lembrou-se da revista e fala com o Lulu. Este desata numa grande gargalhada porque tinha emprestado o disco a um gajo que andava nos escuteiros e, este por sua vez, tinha dito ao Lulu que o ia emprestar ao padre de Santo António da Charneca para este o gravar. O Lulu só imaginava a cara do padre a tirar a rodela do vinil e a deparar-se com a revista da “Gina”. Um padre com uma revista pornográfica nas mãos tinha montes de piada.O que é certo é que a dita publicação nunca mais apareceu. Teria o padre ficado com ela?
* "Ivas, ivas rock ´n roll" – era um rock inventado na minha turma do 7º ano. O ivas referido na canção era relativo ao Gengivas, que era da turma. A canção era assim sempre a abrir:
Ivas ivas rock ´n roll
Bebe um litro de sumol
Vai mijar ao urinol
E aos domingos vai à missa
Com sapatos de cortiça
sexta-feira, abril 28, 2006
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1 comentário:
Genial! Acho que até vou linkar esta posta no meu blog!
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